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Cristo, Nosso Tudo (1935)

por T. Austin-Sparks

Capítulo 6 - Comunhão com Deus

”O Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai... Porque o Pai ama o Filho, e lhe mostra tudo o que faz... Eu nada posso fazer de mim mesmo... porque não procuro a minha própria vontade, e sim a daquele que me enviou." (João 5:19-20,30).

"Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido." (João 16:13).

“A lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte." (Romanos 8:2).

" ...também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus... Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer." (João 5:18,21).

 
Antes de mais nada, peço que leiam atentamente e observem estas passagens das Escrituras. Vocês verão que há uma correspondência maravilhosa entre o Pai e o Filho, e entre o Filho e o Pai. Essa correspondência encontra sua expressão na breve frase "assim como”.

O que é notável de maneira peculiar é o fato de o Senhor Jesus enfatizar isto: que Ele nada pode fazer de Si mesmo. Se permitirmos que o peso total dessa afirmação chegue aos nossos corações, vamos recordar o que foi mencionado no início de nossas considerações: que o Senhor Jesus aceitou voluntariamente uma posição de absoluta dependência de Seu Pai. Ele aceitou uma posição de completo autoesvaziamento. As fontes de Seus recursos não estavam nEle, mas em Seu Pai. "O Filho nada pode fazer de Si mesmo." Não havia recursos para realizar as coisas nEle. Na verdade, Ele estava dizendo: "A fonte de tudo está no Pai. Eu tenho que extrair tudo dEle. Sem Ele, não posso fazer absolutamente nada." Isso é algo tremendo para o Filho dizer. Torna esse relacionamento e comunhão secretos com o Pai tremendamente vitais! Mas a própria necessidade dessa comunhão completa com o Pai era um de Seus recursos secretos.

Não estamos citando apenas fatos, também vemos uma grande diferença entre Ele e os outros homens. O homem natural age por si mesmo. A marca registrada do homem natural é a autossuficiência. Ele sempre encontra a fonte de seus recursos em si mesmo. Vemos isso em Adão. No princípio, até certo ponto, seus recursos estavam em Deus. Ele extraía sua instrução e sabedoria de Deus. Tudo vinha de Deus. Pelo caminho da obediência a Deus, ele estava em comunhão com Ele. Mas chegou o momento em que ele começou a agir por si mesmo. Por uma sutil insinuação do diabo, Adão começou a arrazoar as coisas por si mesmo, até que foi enganado por sua própria vontade, e a desconfiança contra Deus se insinuou em sua mente. Ele tirou as coisas das mãos de Deus para usar suas próprias mãos. Ele deixou de extrair seus recursos de Deus e pensou que poderia tê-los em si mesmo. Essa é a atitude do homem natural em Adão até hoje.

O homem natural age de acordo com sua própria sabedoria. Ele busca raciocinar sobre uma situação, ponderando os prós e os contras, e procedendo de acordo com o que considera ser "senso comum". Ele direciona sua conduta por sua própria sabedoria e razão naturais. A característica mais forte de algumas pessoas é a razão. A fonte das coisas para elas está em sua própria razão, e somente o que pensam e pretendem compreender tem algum valor para elas. Todo o resto não conta. Para outras, os sentimentos são o ponto mais forte. De acordo com o que sentem, agem.

Mas observe, à medida que o homem natural se desenvolver ao longo da história, teremos no fim desta dispensação um homem natural (a humanidade em seu estado decaído) desenvolvido ao máximo. Haverá ditadores e super-homens agindo por si mesmos. Eles serão uma lei para si mesmos, sem consultar os outros. O que eles sentem, desejam e raciocinam deve ser feito. Esse estado de coisas levará ao Anticristo, que será um homem autocontido e representará a soma total de tudo o que é natural – razão, desejo, vontade. Ele não terá reverência a Deus, mas será maior que Deus. Nele, a raça humana será representada em sua natureza decaída plenamente desenvolvida, voltando toda a raça contra Deus.

O que é verdade para o Anticristo é verdade, em parte, para cada membro da raça humana. O homem natural parte de si mesmo, mas o resultado é sempre a morte. Se projetarmos nossa própria vontade, desejos, razão nas coisas, por mais vivas que pareçam, o resultado será a morte. Somente o que procede de Deus é Vida. Em conexão com isso, o significado da palavra do Senhor Jesus é de primordial importância: "O Filho nada pode fazer nada de si mesmo". Se outros acreditam que podem, o Filho não pode. Aqui está a tremenda diferença entre o Senhor Jesus e nós. Ele só pode se mover a partir do Pai. Ele só pode ir se o Pai o guiar.

Ora, a ocasião destas palavras foi a cura do homem coxo, impotente. O contexto deste incidente esclarece bastante o seu significado interior. Eis um homem impotente há anos. Ele tentara por muitos anos entrar no tanque para encontrar a cura. Mas foi em vão. Estava completamente desamparado. Sabia que a sua ajuda dependia de outro homem. Como era patético: "Não tenho ninguém que me ponha no tanque, quando a água é agitada!” [Jo 5:7]. A sua única esperança estava em outro homem. E não tendo "ninguém", um dia Jesus passou por ali e pediu-lhe que se levantasse. O homem impotente não discutiu a respeito da ordem, dizendo: "Já tentei mil vezes, mas não consegui. Não tenho forças para o fazer isso.” Ele depositou a sua fé em Cristo. O que não conseguia fazer por si mesmo, fez na força de outro — Cristo. Abandonando a si mesmo, revestiu-se de Cristo. E descobriu que a sua salvação estava naquele Outro Homem. Então, confiando nEle, se levantou. Cristo tornara-se a sua força. Isto é a Vida.

Ora, esse incidente lança muita luz sobre todo o capítulo. Os judeus se opuseram a isso, porque eram governados por leis exteriores. Sua demanda era o cumprimento da letra, cujo resultado era a morte, não a Vida. "Porque a letra mata, mas o Espírito vivifica” [2Co 3:6]. Os judeus preferiam deixar o homem desamparado até a morte do que receber a obra de Cristo no lugar da lei. Cristo era governado por uma lei interior que era a lei da Vida e, portanto, trazia a Vida. Ele disse: "Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também… pois tudo o que este fizer, o Filho também se”melhantemente o faz” [Jo 5:17; 19]. Aqui está uma correspondência maravilhosa entre o Pai e o Filho, uma lei interior, uma união em vida com Deus, da qual fluem as obras de Deus e as manifestações da Vida.

O que era a lei? A lei dos judeus consistia em "farás" e "não farás". No entanto, a lei judaica era contra a cura no sábado, e o Pai não era contra isso. Era a vontade do Pai, e o Senhor Jesus estava, de forma misteriosa, reconhecendo que o Pai estava agindo, aquilo que o Pai o fazia, portanto, Ele o fazia. Foi a lei de uma comunicação e comunhão interior com o Pai que moveu o Senhor Jesus a agir. Ele não era governado pela mente natural, nem pela letra da lei; Ele não tentou raciocinar sobre qual poderia ser a vontade do Pai. Foi a lei do Espírito da vida nEle que Lhe revelou a vontade do Pai, que Lhe deu aquela certeza interior de Seus atos e que resultaram de um ouvir e ver interiores. Ele podia dizer a respeito de Seu Pai: "O Pai, que me enviou, esse mesmo é quem dado testemunho de mim. Jamais tendes ouvido a sua voz, nem visto a sua forma." [Jo 5:37]. Há um mistério nessa relação entre o Pai e o Filho. A fonte secreta do poder do Filho nesse relacionamento é porque era um relacionamento de Vida pelo Espírito.

Agora, o mesmo relacionamento se aplica a nós. Na carta aos Romanos, o apóstolo Paulo diz: "A lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte." [Rm 8:2]. Livre da lei do pecado. Livre da lei da morte. É a liberdade de uma vida em Deus por meio de Cristo .

Posso pedir que você pare por um momento? Você realmente viu isso? Tornou-se uma realidade interior para você? Você realmente vê que nosso relacionamento com o Senhor Jesus Cristo é exatamente na mesma base que era o relacionamento dEle com Seu Pai aqui na Terra? É o relacionamento de uma vida no Espírito. Tudo depende disso e nos descortina um novo mundo. Marca a diferença entre uma aceitação exterior das verdades cristãs e sua doutrina, e aquilo que é a Vida revelada e operada pelo Espírito. Nosso relacionamento com Cristo é baseado no Espírito da Vida operando em nós.

Vamos apenas dizer algumas coisas sobre o resultado desse relacionamento. É um relacionamento pela Vida e seu testemunho é a Vida. Observe como isso era verdade no caso do Senhor Jesus. É significativo a frequência com que Ele usou a expressão "Minha hora" durante Sua vida. Isso nos mostra claramente o quanto toda a Sua vida foi governada por Seu Pai. Ele era guiado em Suas ações e movimentos pelo tempo de Deus. Às vezes, era apenas uma questão de horas ou minutos. Mas Ele não conheceu momentos incompletos em Sua vida. Ainda assim, Ele nunca tinha pressa. Tudo em Sua vida era cronometrado de uma maneira maravilhosa. Qualquer tempo não servia para Ele, nem todos os tempos. Tentar realizar coisas fora do tempo de Deus representaria a morte. Quando, em Caná, Sua mãe veio persuadi-Lo a suprir a necessidade que havia surgido, Ele só agiu quando "Sua hora" chegou, talvez apenas alguns minutos depois. Novamente, quando Seus discípulos O chamaram para socorrer Lázaro, que estava gravemente doente, ou quando Seus irmãos Lhe perguntaram se Ele iria a Jerusalém para a festa com eles, Ele esperou o momento certo, a ordem de Seu Pai. Em todos esses casos, vemos a mesma atitude nEle. Ele não estava seguindo Seus próprios raciocínios, mas aguardando o tempo que o Pai havia determinado. O mesmo acontecia com as palavras que Ele proferia. Cada palavra vinha do Pai e não dEle. Tempo, ações, palavras; tudo era governado pelo Pai. "Meu Pai trabalha — e eu trabalho.”

Mas como Ele conhecia a vontade do Pai? Não era pela audição do ouvido natural, como se uma voz audível Lhe continuamente O orientasse. Cristo conhecia a vontade do Pai pelo Espírito da Vida interior. Foi a comunhão da vida única nEle que Lhe trouxe esse conhecimento interior da vontade e das obras de Deus. A Vida Divina não é apenas uma dádiva, um depósito, algo a ser armazenado em nós. Esta Vida é um poder atuante em nós. É uma direção divina dada pelo Espírito da Vida interior. Deus governa e comanda por esses meios. Ele nos revela Sua vontade pelo Espírito da Vida em nós.

O Senhor Jesus conhecia a vontade do Pai pelo Espírito vivificador no Seu interior. É exatamente como Ele disse: “Vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão." [Jo 5:25]. O Senhor Jesus não estava se referindo aqui aos mortos fisicamente, mas aos mortos espiritualmente. Também não se referia a uma voz audível, mas ao Espírito vivificador em nosso interior, pelo qual a voz do Filho de Deus é ouvida. "As palavras que eu tenho dito são espírito e são vida." [Jo 6:63]. É o poder de Deus operando em nosso interior. Deus fala aos nossos corações. Temos que aprender a entender o falar de Deus em nós desde o início, em nosso novo nascimento. Há uma linguagem do Espírito, e temos que dar atenção a esse movimento vivificador do Espírito da Vida em nós. A voz do Filho de Deus é ouvida pelo Espírito vivificador em nosso interior. Foi assim com o Senhor. Ele experimentou esse vivificar pelo Espírito de Deus em Si mesmo. O que é verdade no caso do Senhor deve ser verdade para nós. Devemos ser governados da mesma maneira. "Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus" [Rm 8:14]. A filiação se dá em razão do nosso relacionamento com Ele. A certeza dessa filiação vem pelo Espírito testificando em nosso espírito, dizendo: "Você é um filho de Deus". É o testemunho da Vida em nós. Sabemos em nosso espírito que somos filhos de Deus. Sabemos disso apesar de nossa pecaminosidade, falhas e deficiências. Somos governados pelo Espírito da Vida que procede dEle.

Resumindo tudo o que dissemos, vemos que esse relacionamento, essa comunhão com Cristo, está disponível para nós no terreno da ressurreição. Cristo nos trouxe a essa união com Ele em Sua Vida. Isso exige três passos definidos, de suma importância:

1. Definitivamente, precisamos reconhecer que esse relacionamento com o Senhor precisa estar no Espírito da Vida, que isso é um fato, que é verdade. Temos que reconhecer, honesta e definitivamente, que esse relacionamento, que "Cristo em nós", é um fato, e que tudo tem que ser governado pelo Espírito da Vida. 

2. Deve haver perfeita obediência à lei da Vida do Espírito em nós. A obediência era a lei da vida de Cristo. Ele nunca foi influenciado por homens ou circunstâncias. Ele não permitiu que os homens ditassem Seu caminho quando diziam: "Faça isto ou aquilo; outros também o fazem". Isso não era motivo para Ele fazer algo. Ele nunca colocou Suas decisões diante dos homens, pois sabia em Seu próprio coração o que o Pai queria. Ele trabalhou com Deus em todas as coisas, não de acordo com as aparências exteriores ou o que ouvia de outros, mas de acordo com o Espírito da Vida Nele. Ele viveu em absoluta dependência do Pai e em completa obediência a toda a Sua vontade.

3. Andar no Espírito é essencial. Não devemos viver na carne. Viver na carne significa fazer as coisas por nós mesmos, fazer a nossa própria vontade. Mas andar no Espírito é fazer todas as coisas como se viessem de Deus, governadas pelo Espírito Santo.

Por fim, não nos esqueçamos de que esta Vida no Espírito é progressiva e crescente. Não sabemos tudo no início. Temos que aprender, e ao aprender, frequentemente cometemos erros. Mas, à medida que formos fiéis e obedientes ao Senhor, seremos guiados passo a passo e aprenderemos a andar no Espírito. Temos que aprender pela experiência. Mas quanto mais conhecemos o Senhor Jesus, mais entramos no fato de uma salvação completa em plenitude da glória nEle para nós, mais essa Vida crescerá em nós, e andaremos na luz e, portanto, na liberdade dos filhos de Deus.

Essa caminhada no Espírito pode ser algo maravilhoso no contexto de nossas vidas, à medida que conhecemos cada vez mais o Espírito da Vida em nós — esse relacionamento secreto e comunhão com Cristo na Vida.

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