por
T. Austin-Sparks
Se me pedissem para escolher um texto que esteja em meu coração, teria muita dificuldade. Só posso dizer que o Livro inteiro é o texto, então apresento toda a Bíblia como meu texto, e o que está em meu coração vou apresentar, em primeiro lugar, na forma de três proposições ou perguntas.
Em primeiro lugar: se houvesse uma coisa específica que fosse a causa de todo o sofrimento, a miséria, os problemas, a angústia, as guerras e a necessidade de Deus se manter afastado, não desejaríamos com todo o nosso ser ser salvos e libertos dela? Tal coisa existe, e tenho certeza de que, se realmente nos tocasse a consciência de que tudo o que mencionei, e muito mais, desde o início, nesse momento e até o fim, estava relacionado e ligado a esse único ponto, sua resposta à minha pergunta seria: "Que o Senhor me salve disso! De todo o meu coração, de todo o meu ser, busco ser liberto disso!" Tenho certeza de que você concorda.
Em segundo lugar: se houvesse algo que desse a Deus a base para estar conosco, sem medo e reservas, para que Seus propósitos pudessem ser realizados, Seu poder liberado, Sua sabedoria ativada, a comunhão com Ele ser límpida e que nossa existência na Terra resultasse na Sua glória; não diríamos de todo o coração e de todo o ser: "Que isso esteja em mim!"? Certamente estaríamos em uma busca muito sincera e de todo o coração por isso, não é mesmo?
Terceiro: Se aquela coisa maligna estivesse em nós, e só pudéssemos ser libertos de seu poder e sua atividade por uma profunda aplicação da Cruz do Senhor Jesus, e ela precisasse ser cada vez mais profunda, embora isso pudesse custar sofrimento, quebrantamento, esvaziamento, humilhação; não diríamos que o Senhor seria justificado em qualquer caminho que Ele tomasse para subjugar esse impedimento - que abriria caminho, nesse processo doloroso, para aquilo que falei em segundo lugar, suplantando a coisa maligna pela outra coisa boa. Não justificaríamos Deus em Seus métodos, Seus caminhos? Se esse fosse o objetivo em vista e Ele estivesse caminhando em direção a esse fim, não diríamos: "O Senhor está certo, o Senhor está justificado"? Você concorda? Talvez não seja tão fácil dizer Sim aqui — mas, quando pensamos nisso, qual é a alternativa? A alternativa seria a perda da única coisa gloriosa, com seu significado muito mais amplo do que o que indiquei, devido a permanência da outra coisa maligna. Estas são as alternativas. Então, o Senhor não é justificado no que Ele faz para deslocar uma e implantar a outra?
Qual é a única coisa maligna, a causa de tudo o que mencionamos e muito mais? É o orgulho — a raiz de todos os problemas. Qual é a coisa boa? Bem, exatamente o oposto — a humildade. Comecei dizendo que dei a vocês a Bíblia como meu texto base, pois toda a Bíblia é construída sobre essa questão do orgulho ou da humildade, com suas duplas consequências. Esse é um vasto campo para caminhar e meditar; mas não há dúvida sobre isso — para onde quer que você olhe, desde o dia em que o homem pecou até hoje, e até o final do que a Bíblia nos apresenta, você descobrirá que é exatamente essa questão que está por trás de toda a história de Deus, do homem e das forças do mal — exatamente essa questão. Há muitos aspectos disso, mas tudo se resume a uma questão somente. De uma forma ou de outra, pode ser atribuída a essa questão do orgulho ou da humildade.
Sim, toda a Bíblia se baseia nisso. Todo o significado da vinda de Cristo a este mundo está ligado a isso, à Sua própria vinda da glória. Em algum lugar, de alguma forma, antes de chegar, Ele "se esvaziou" (Fp 2:7). Mais tarde, falou ao Pai sobre a glória que tinha consigo antes que o mundo existisse (Jo 17:5). Ele havia deixado tudo isso de lado, havia se esvaziado. E então Sua estranha — ah, sim, muito estranha até que tenhamos esta chave — Sua estranha entrada neste mundo, as circunstâncias de tudo isso relacionadas à Sua vinda e a todo o Seu tempo aqui. ”As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos [lit. poleiros ], mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8:20). É tudo relacionado a uma questão. Algo tremendo está sendo travado e enfrentado, algo imenso. Todo o significado de Sua vinda — Sua condescendência, autoesvaziamento, nascimento, vida, morte — e toda a explicação das experiências de Seu povo, tudo se concentra nesta única questão. A disciplina — o castigo, como é chamado — o trato do Senhor conosco, concentra-se em uma coisa: tudo se relaciona com o propósito para o qual Cristo veio, como Ele veio e como Ele cumpriu o propósito.
E, além disso, toda a natureza e vocação da Igreja estão centradas neste único objetivo. A Igreja que servirá aos conselhos eternos de Deus jamais será uma Igreja de orgulho, autoglorificação, glória, poder e louvor mundanos. Ela será, para sempre, o que era no princípio, algo que o mundo não verá com louvor, mas sempre verá com desprezo. Isso é essencial à sua vocação, pois sua vocação é, positivamente, substituir o mundo, seu temperamento, espírito e padrões; fazer algo espiritualmente neste universo — livrá-lo daquela coisa maligna que tem sido sua praga e maldição desde Adão em diante.
Não é necessário nenhum argumento para demonstrar que a causa das guerras, a causa de todos os problemas, é o orgulho – em algum lugar, de alguma forma. Não é de admirar, então, a citação dessa frase: “do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo" (Ap 13:8). Isso não é algo subsequente, ocorrendo tardiamente na história deste mundo. Desde a fundação do mundo, o Cordeiro foi morto. E se um cordeiro simboliza alguma coisa, simboliza pureza e inocência de motivação, dependência, altruísmo, fraqueza – tudo isso, do ponto de vista deste mundo do que é glória, grandeza, poder e sabedoria, é menosprezado – e, portanto, não é surpreendente que o Espírito Santo escolha usar o diminutivo em relação até mesmo a um cordeiro. Não é aparente em nossa tradução, mas está lá claramente no original – "um pequeno Cordeiro" – um símbolo daquilo que vence, luta esta batalha desde a fundação do mundo. Esta questão é a causa de todos os problemas — a causa de Deus se afastar, se retrair, de ser incapaz de se comprometer, por causa desta coisa que está sempre pronta para se apoderar dEle e fazer com que Ele e Suas bênçãos sirvam aos seus propósitos e sua própria glorificação. Isso está sempre lá, pronto para abocanhar a menor bondade do Senhor e transformá-la em sua própria glória. Está lá. E assim o Cordeiro foi morto desde a fundação do mundo.
E isso confere à proclamação de João um significado tão pleno: “Eis aqui o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29). Qual é o pecado do mundo? É o orgulho. Você pode não pensar assim; pode não enxergá-lo: mas eu lhe pediria que considerasse novamente e visse se tudo o que é chamado de pecado não pode ser atribuído a isso, se não é o orgulho alguma forma de expressão do orgulho. Pois qual é a raiz do orgulho? O que ele é? É o ego vivificado, ressuscitado, ativo – essa é a raiz do orgulho; e os ramos e os frutos – quantos são! – ciúme, cobiça, ira e todo o resto. Como a ira pode ser orgulho? Bem, a ira, se não é santa, purificada, purgada pelo sangue, como a ira do Cordeiro, se é ira movida por nós mesmos e nossos interesses, é a ira do ego. Muitas vezes, nossa raiva é nossa autopreservação, nossa reação a alguma ameaça aos nossos interesses ou aos nossos gostos. Rebelião, teimosia, preconceito e muito do nosso medo são todos atribuídos ao orgulho. Do que temos medo? O que estamos temendo? Se examinássemos nossos medos, por que teríamos medo? Se estivéssemos completamente separados de interesses pessoais – isto é, se pudéssemos nos entregar inteiramente ao Senhor e sair de cena – grande parte do nosso medo não desapareceria? E assim poderíamos prosseguir: mas não queremos nos entregar a uma análise indiscriminada da natureza humana ou do orgulho. Já mencionamos o suficiente para mostrar que o orgulho é a raiz e que existem inúmeros frutos que podem ser rastreados até essa raiz.
Portanto, por um lado, é terrivelmente verdade: “Abominável é a Senhor todo o arrogante de coração" (Pv 16:5). “Os soberbos, ele os conhece de longe" (Sl 138:6). Tudo brotou daquele coração orgulhoso que se elevou e disse: “Erguerei o meu trono acima das estrelas de Deus; ... serei como o Altíssimo" (Is 14:13,14 NVI). Com esse “serei”, todos os problemas começaram, e aquela criatura injetou seu veneno na raça humana. O veneno da raça humana é o orgulho, e ele se espalhou por toda parte. Às vezes, é quase indetectável: nem sempre conseguimos rastreá-lo em todas as suas formas, porque o orgulho tem o que poderíamos chamar de aspectos negativos, além de positivos. Há, é claro, os obviamente, manifestamente orgulhosos, os ambiciosos, os assertivos, os presunçosos, os autossuficientes. Mas há aspectos negativos — e uso essa palavra com muito cuidado em relação ao orgulho, porque o orgulho é positivo, seja qual for a sua forma. É uma coisa feia. Muitas das nossas murmurações e lágrimas são orgulho — mas achamos que são humildade. Muitas das nossas críticas a outras pessoas provêm do orgulho: achamos que poderíamos fazer melhor, que poderíamos ir além, colocando-nos como o juiz, o crítico: o orgulho está na raiz. Grande parte do nosso tom pobre e miserável é, afinal, orgulho. Oh, como isso é sutil e sinuoso! Está lá. Então o Senhor tem que se afastar.
Por outro lado, observe a humildade. “O homem para quem olharei é este" — esse é o começo, até mesmo do Senhor olhar na direção de alguém — “o aflito e abatido de espírito" (Is 66:2), e Ele habita com eles (Is 57:15). E “Guia os mansos no que é reto, e lhes ensina o caminho (Sl 25:9). E "os mansos herdarão a terra" (Mt 5:5). É assim em todo o tempo; a vindicação se baseia nisso. “Era o varão Moisés mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra" (Nm 12:3): e você sabe quando isso foi dito — no momento em que sua posição foi disputada, e Deus apareceu à entrada do tabernáculo e respondeu ao desafio com base na mansidão de Seu servo. Deus permanece presente e vindica os mansos.
Eu digo que toda a Bíblia se baseia nesta questão. Que questão vital! Não está o Senhor justificado em tomar quaisquer medidas para resolver essa situação — quebrando, esvaziando, humilhando, retendo, adiando, protelando; de alguma forma nos reduzindo a nada, a um lugar de total dependência, onde não há nada em que possamos confiar além do próprio Senhor? Ele está justificado? É um processo tremendo. É uma obra muito real, muito devastadora: e o próprio fato de sofrermos tanto mostra quão profunda e real ela é.
Sim, mas veja, o Senhor tem objetivos tão grandiosos em vista. Não é apenas que o Senhor queira pessoas de um certo tipo e espécie; não é apenas que Ele deseje que sejamos de uma certa natureza. Ele criou o homem para um grande destino, e esse ponto – o orgulho – entrou em cena e tornou impossível para o homem cumprir esse destino. Então, Ele o garantiu em um Homem completamente diferente de nós – o Cordeiro imolado, o Homem que se esvaziou, o Homem que se tornou obediente até a morte, sim, uma morte como a Cruz, a última palavra em vergonha, em desprezo - e agora Ele nos diz: "Tende em vós o mesmo sentimento" (Fp 2:5). Acho que a maior conjunção de toda a Bíblia está aí. “Pelo que… Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome" (Fp 2:9). “Pelo que” – tudo o que leva a isso e tudo o que resulta disso. Duas vastas esferas de significado e valor estão atreladas a essa conjunção, “pelo que”. Mas — "foi assim com o Mestre”. Bem, não podemos fazer o que Ele fez, nem cumprir tudo o que Ele cumpriu, mas somos chamados a beber do cálice que foi o Seu cálice.
Portanto, que esta seja uma palavra de interpretação sobre o porquê de o Senhor estar lidando conosco como Ele tem lidado e lida – por um lado, vencendo esta coisa maligna, quebrando, esvaziando, moendo até virar pó, até que não reste nada de nós em termos de autossuficiência; por outro lado, entregando e proporcionando um aumento dEle mesmo em nós.
Esta não é uma palavra, talvez, de grande inspiração, mas sinto que é uma palavra de suma importância. Isso deve ser verdadeiro para nós individualmente. Deve haver também uma humildade coletiva. Este é o caminho pelo qual o Senhor se comprometerá. Ele nunca nos dará nada para alimentar nossa carne, para ampliar e fortalecer nossa vida natural. Ele nos manterá no caminho que nos mantém seguros nesse aspecto. Quão maravilhosamente a Bíblia se torna viva quando você a olha dessa maneira! Foi o pecado de Adão, o pecado de Israel, o pecado de todos nós. “Para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações…Foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte” (2Co 12:7); isso estava tornando o homem seguro para grandes revelações, minando seu orgulho.
Sim, esta é uma palavra importante; explica muita coisa. Mas lembremo-nos de que o Senhor sempre tem fins positivos em vista, não negativos. Embora Seus caminhos possam parecer destrutivos, até mesmo aniquiladores, Ele sempre tem em vista – e não apenas a longo prazo, mas o mais rápido e breve possível – aquela posição em que Ele mesmo pode abrir mão, por assim dizer, de Seus próprios medos e reservas; e dizer: "Encontrei aquele a quem posso me entregar sem medo". Que assim seja conosco.
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