por
T. Austin-Sparks
Primeiramente publicado na revista "A Witness and A Testimony", de Set-Out 1962, Vol. 40-5. Origem: “Truth in the Inward Parts". (Traduzido por Maria P. Ewald)
Bem poderia o SALMO 51 ser intitulado DE PROFUNDIS [Oscar Wilde, 1897].
A partir desse ponto, o salmista atinge as profundezas da tristeza e do remorso. O fundo é tocado quando a questão se relaciona aos “crimes de sangue", uma vez que não havia provisão para tal transgressão no ritual mosaico, a resposta era a morte. Davi estava diante dessa realidade no pano de fundo desse Salmo, devido ao episódio de Urias, o heteu (2Sm 11-12). Ele bem sabia que a misericórdia de Deus precisaria ir mais fundo que a morte; porque essa seria sua penalidade. Em sua profunda agonia, Davi atinou para uma questão vital. É aqui que “um abismo chama outro abismo” [Sl 42:7]. Um sofrimento profundo demanda por uma solução profunda, se esse sofrimento estiver relacionado ao pecado. A solução vislumbrada por Davi está no versículo seis: "Eis que te comprazes na verdade no íntimo". Para que possamos atingir esse ponto e solução tão profundos, Deus usará nossas falhas e erros.
Existe uma
No curso de nossa história espiritual, Deus lida conosco de maneiras cada vez mais profundas. O Senhor desce progressivamente até tocar o fundo, para obter verdade desde o nosso interior. Para tanto, Ele destrói todas as nossas profissões, doutrinas, suposições, pretensões, ilusões e costumes.
Nesse ponto não vale formalismo, ritualismo judaico, nem observância externa de ritos e cerimônias! Não! Tudo deve atingir o íntimo, as partes interiores. Deus trabalha nessa direção, em busca das partes interiores. Será que percebemos isso? Compreendemos o que Ele está fazendo conosco? O Senhor nos abençoará até certo ponto em nossa caminhada com Ele, como vemos ilustrado no homem descrito no Salmo 1. Ele nos concederá Sua provisão graciosa quando transgredirmos, falharmos, e errarmos - Ele nos encontrará em Sua graça. Mas Deus irá conduzir esse assunto até o ponto mais íntimo de nosso ser, e registrará ali Sua obra de graça e redenção.
"Te comprazes...”. Davi não compreendeu isso, até ter alcançado o ponto mais profundo e sombrio de necessidade, fracasso, fraqueza e inutilidade. Então, ele clamou. Não é suficiente agradar a Deus de maneiras comuns, observando os rituais da lei, participando das cerimônias e cumprindo ordenanças exteriores. Deus busca a verdade nas partes interiores, nas profundezas do nosso ser. Por quê? Porque a verdade é a principal característica da natureza Divina. Deus é chamado: Deus da Verdade [Sl 31:5; Is 65:16]. Jesus Cristo, a segunda Pessoa da Divindade, Se autodenominou a Verdade - “Eu sou... a verdade” [Jo 14:6]. “Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” [Jo 18:37]. O Espírito Santo é descrito como Espírito da Verdade - “quando vier, porém, o Espírito da verdade...” [Jo 16:13].
Essa é uma característica da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo! Deus deseja e estabeleceu como propósito em Seu coração, ter pessoas participantes de Sua natureza. Assim, Ele está trabalhando cada vez mais profundamente nessa direção: o que é verdadeiro a respeito dEle, deve ser verdadeiro para com Seus filhos - aqueles que nasceram Dele – e que devem ser verdadeiros filhos de Deus nesse sentido.
Satanás é descrito como mentiroso, o pai da mentira. Por isso, toda mentira é uma abominação para Deus. Deus consignou todos os mentirosos ao lago de fogo, e excluiu da Nova Jerusalém todo o que profere mentira. Deus odeia tudo o que não é totalmente verdadeiro, em correspondência à Sua natureza. Ele deseja a verdade nas partes interiores.
A interferência de Satanás na criação, em especial no homem, tornou-o numa criatura falsa no que diz respeito a Deus. O homem se tornou uma representação incorreta da mente Divina, e é uma criatura enganada. “O Deus deste século”, diz Paulo, "cegou o entendimento dos incrédulos" [2Co 4:4]. O homem é uma criatura enganada e cega; mas Deus deseja a “verdade no íntimo”.
Então percebemos como essa questão é ampla, e é difícil saber o que dizer ou não a esse respeito. Vamos nos concentrar por um momento nesta cláusula: "as partes interiores". Perceberemos essa tônica ao longo de todo o salmo [51]. Veja: "Cria em mim, ó Deus, um coração puro"; “renova dentro de mim um espírito inabalável”; "o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás". Veja bem, nesse momento de real necessidade, perceberemos essa esfera mais profunda. Então não haverá mais engano, falsidade, zombaria, fingimento, as coisas não prosseguem como se estivesse tudo bem, enquanto não estão; não mais usaremos de meios externos para encobrir a falsidade interior; nem participaremos de reuniões, orações e tudo mais que envolve o sistema, quando as partes interiores não estiverem corretas diante de Deus. A partir desse momento, poderemos nos ver como somos por natureza, e isso retrata o processo de nossa reconstituição. Qualquer coisa que não atender a esses parâmetros será admitido como falso. Qualquer sistema de religião que apenas trabalhar no exterior, cobrindo a vida interior por meio de um mero rito será considerada falsa, não compatível com a verdade. A obra de Deus envolve reconstituir a natureza humana. E isso, é claro, implica em duas coisas.
Por um lado, haverá destruição. Se você conhece alguma coisa a respeito dos tratos de Deus com as vidas que Ele toma em Suas mãos, saberá que isso predomina: um quebrar progressivo, uma busca da raiz das coisas, um livramento do engano. Se tivermos alguma ilusão a respeito de nós mesmos, elas desaparecerão quando Deus tiver acabado conosco. Se formos governados por qualquer tipo de falsidade em nossa concepção própria, nossa posição e nossa obra, quando Deus tiver terminado Sua obra, tudo isso terá desaparecido. Ele vai nos despedaçar até o ponto em que nos veremos impuros, e todas as nossas justiças serão como trapos de imundícia. Ele nos derrubará, sim, Ele o fará.
Mas existe o outro lado, é claro, pois Deus não opera sempre no negativo. Ao longo de tudo isso, existe a edificação. Mas isso ocorrerá a partir do momento que qualquer coisa que for falsa, e que não for absolutamente transparente e verdadeira, direta, clara, se tornar abominável para nós. Cada vez mais, nosso homem interior irá se revoltar contra nossa própria falsidade. Qualquer exagero nos trará a convicção do erro, uma declaração falsa nos atingirá com força, pois saberemos que não falamos a verdade. É uma coisa tremenda estar nas mãos do Espírito Santo, até que, como Deus, a única coisa que odiaremos é qualquer coisa que for falsa. Disse Davi: "detesto todo caminho de falsidade" [Sl 119:104; 128]. Nós precisamos chegar a esse ponto. Precisamos ser amantes da verdade. E isso nos perseguirá por toda parte ao longo de nossa vida, dentro de nós, se de fato estamos ou não nos enganando a nós mesmos. Diante de Deus, saberemos exatamente o que Ele pensa a nosso respeito, e saberemos onde estamos diante de Sua luz.
Isso nos acompanhará também em nossa vida social, e todas as nossas mentiras e falsidades passarão pelas mãos de Deus. Que quantidade de falsidade e faz de conta existe na esfera social. E toda essa “maquiagem”? Será que tudo isso não visa nos tornar diferentes do que realmente somos? Dar uma aparência de algo que não é verdade? Toda a vida social é assim, uma fábrica de inverdades, e temos muitas maneiras de dizer coisas que, de fato, não são verdadeiras.
Isso nos segue de perto em nossos negócios. Existe a mentira que nos garante uma boa venda ou compra - a mentira comercial. Assim, por todos os lados, Deus irá buscar esta questão da verdade. Perdoe-me, mas esse é um assunto muito importante para Deus. Se Deus odeia o que é falso e deseja a verdade no íntimo, como Ele pode abençoar qualquer coisa falsa? Seus olhos nos veem.
E essa é uma obra realizada com o passar do tempo - de fato, dura uma vida. No entanto, tudo vai se tornando mais intenso na medida que avançamos. O Senhor deixa muita coisa passar enquanto somos bebês espirituais, assim como fazemos com nossos filhos. Sabemos que são crianças, por isso relevamos alguns de seus erros. Deus é muito paciente e muito terno em Sua forma de nos conduzir. Não seria bom trazer à luz toda a plenitude e perfeição de Sua natureza muito cedo - Ele distribui isso ao longo de nossa vida. Quanto mais nos achegamos ao Senhor, mais meticuloso o Espírito Santo será conosco a respeito dessa questão da verdade, mais próximos serão Seus tratos conosco.
De fato, podemos afirmar que "aperfeiçoamos a nossa santidade no temor de Deus" [2Co 7:1] - aperfeiçoamos. Quanto mais próximos do fim chegarmos, mais rigorosos serão os tratos do Senhor com qualquer coisa falsa em nossas vidas. É uma questão de tempo, mas Deus é muito fiel. Ele é muito fiel! Ele não deixará as coisas passarem. Será que desejamos que Ele seja fiel? Bem, talvez não seja confortável dizer: “Sim”, mas é bom que Ele seja fiel com toda inconsistência, contradição e falsidade em nosso íntimo.
Isso leva esse assunto à uma esfera mais profunda do que a da nossa vida natural e moral. Não me refiro a questões morais. É correto ser natural e humanamente honesto, íntegro, reto, verdadeiro. No entanto, não é a isso que me refiro, pois trato de uma esfera ainda mais profunda do que a nossa vida moral natural em seu melhor, pela simples razão de que, por natureza, não compartilhamos das concepções e dos padrões de Deus. Os pensamentos de Deus a respeito das coisas são muito diferentes dos nossos. O que Deus jamais permitiria, nós permitiríamos, o ponto de vista dEle é completamente diferente do nosso a respeito das coisas. Julgamos de uma maneira, e Deus julga de outra. Precisamos alcançar o ponto de vista de Deus.
Podemos dizer: ‘não vejo mal nenhum em tal coisa, não há nada de errado nisso, veja isso e aquilo’. Tomamos como base o nosso padrão, ou talvez até mesmo o de outras pessoas. Conhecemos muitas pessoas que costumam fazer o seguinte: apontam para uma figura notável na obra de Deus, para sua vida, tomando-na como modelo a ser copiado, assumindo isso como verdade. Dizem: ‘Oh, não há mal nenhum nisso, veja!’ Conheço vidas e ministérios que foram arruinados com essa desculpa.
A pergunta é: O que o Senhor diz a esse respeito? Deus diz: “Anda na minha presença!” Não diante de um modelo ou padrão humano. Você pode responder: ‘Não há mal nenhum nisso; é o que se costuma fazer; é uma prática bastante comum’. Não, não! "Anda na minha presença”, diz o Senhor. Temos que entender isso no espírito, no homem interior. Isso é ainda mais profundo do que nossos melhores padrões morais. Caso contrário, não faria sentido que isso estivesse na Bíblia, se nossos padrões morais pudessem se elevar ao nível da satisfação de Deus - por que então deveríamos ser tão tratados e reconstituídos?
Tudo isso é ainda mais profundo que nosso intelecto, que nossa razão. Não poderemos, por meio de nossa razão ou intelecto, atingir o padrão de Deus. De modo nenhum! Não pense que, por meio de qualquer método de raciocínio você chegará ao padrão de Deus. Isso só acontecerá por meio da revelação do Espírito Santo. Cristo deverá ser revelado em nossos corações pelo Espírito. Se assim não fosse, se pudéssemos alcançar isso por meio de nossa própria inteligência, não teria sentido que Jesus dissesse: “quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade” [Jo 16:13]. Tudo deve advir de uma revelação de Cristo em nossos corações, nas partes interiores. Isso é algo espiritual. "Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade" [Jo 4:24] - espírito e verdade caminham juntos. Somente o que é espiritual, o que é de Deus, é a verdade - somente isso!
O apóstolo Paulo tinha um grande intelecto, como todos sabemos, e ele tinha um padrão moral muito elevado, mas foi um homem completamente enganado antes de sua conversão. “A mim me parecia que muitas coisas devia praticar contra o nome de Jesus...” [At 26:9]. ‘Para mim era uma questão de consciência praticar coisas contra...’. Ele tinha uma consciência. Aquilo era justificável diante da justiça da lei, era irrepreensível! Existe um padrão moral, um padrão intelectual e um padrão de consciência! Mas em todas essas coisas, podemos ser enganados. Não, esse não é o caminho.
Somente por meio da obra completa e transformadora do Espírito Santo em nós isso acontecerá. Pode ser que o Senhor venha a nós por meio da honestidade comum e da sinceridade. Tenho certeza de que, se não quisermos ser honestos e diretos com Deus não chegaremos a lugar nenhum, mas não foi a honestidade que nos levou até lá. O Senhor pode, de fato, demandar que sejamos inteiros e completamente honestos com Ele ao longo do caminho. Entretanto, nunca devemos imaginar que qualquer sinceridade de nossa parte nos levará a ser participantes da natureza Divina - de maneira nenhuma! “Eis que te comprazes na verdade no íntimo”, na esfera mais profunda do nosso ser - em nosso espírito.
Se estivermos numa posição falsa, estaremos em grande fraqueza, e nosso fundamento cedo ou tarde ruirá. Mas o caminho do Senhor objetiva nos libertar disso.
Em consonância com o desejo de T. Austin-Sparks de que aquilo que foi recebido de graça seja dado de graça, seus escritos não possuem copirraite. Portanto, você está livre para usá-los como desejar. Contudo, nós solicitamos que, se você desejar compartilhar escritos deste site com outros, por favor ofereça-os livremente - livres de mudanças, livres de custos e livres de direitos autorais.